sexta-feira, 6 de maio de 2011

Direito, Justiça e coisas tais...

Discurso do Juiz Fernando Tourinho Neto
em 17/04/2000, na solenidade de sua posse
como Presidente do TRF – 1ª Região
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Atinjo, hoje a dignidade de participar da direção desta Casa e, ao obtê-la, mesmo sabendo da responsabilidade que recai sobre meus ombros, sinto que a eminência da atribuição não perturba a tranqüilidade de minha consciência. Sei que devo dar continuidade à tradição desta Casa de trabalho e eficiência. É um grande fardo.
Neste momento, volto o pensamento para o meu passado. Vejo-me acompanhando meus pais –– ele, promotor público, ela, professora primária –– e meus quatro irmãos, Armando, Ilma, Arx e Art, pelo interior da minha querida Bahia. Tempos difíceis. Não havia luz elétrica, água encanada, calçamento, bancos, nem ginásios nas cidades. Muitas delas sequer possuíam padaria. Telefone, nem pensar. O rádio era a bateria. Jornal, quando muito, uma vez por mês, vindo de Salvador.
Meu pai era um homem simples, modesto, despretensioso, porem enérgico, estudioso. Era bom, justo, terno, amoroso. Como sinto sua falta… Emociono-me sempre ao dele recordar-me, controlando-me para que as lágrimas não rolem pelo rosto. Era, pelos colegas de seu tempo, tido como o príncipe dos promotores. Um paradigma do Ministério Público, diziam eles. Minha mãe, nos seus oitenta e quatro anos, continua firme, forte, uma “mulher de aço”. Dizendo um não, jamais volta atrás. Foi minha professora –– minha e de meus quatro irmãos –– durante o curso primário e preparou-nos para o exame de admissão ao ginásio. Sempre nos incentivou a estudar. Gosta de ler, de trabalhar. Dinâmica, não pára. Admiro-a profundamente.
Tenho, aqui de público, de reconhecer minha gratidão à Conceição, minha mulher, minha Cece, e às minhas filhas, Cláudia, Lílian e Fernanda, pela compreensão que têm para comigo nesta minha vida agitada e turbulenta. São, deveras, adoráveis.
Neste momento auspicioso para mim, agradeço o incentivo que sempre recebi dos meus irmãos. Todos eles estão em meu pensamento. Arx aqui está presente. Amo-os. Agradeço, também, a presença de meus tios Fernando e Luizernando, irmãos de meu pai, e de meus primos Ed, Edna e Deraldo.
Agradeço, igualmente, a presença de meus amigos, muitos vindos de minha Bahia, da bela Salvador, e de Coração de Maria, terra que, também, me outorgou o título de Cidadão. Fico feliz em ver colegas de turma, advogados, procuradores da República, ex-estagiários, antigos funcionários –– muitos já aposentados –– com quem trabalhei durante quase dez anos em Salvador.
Passo os olhos em volta e vejo juízes federais de todos os quadrantes, de todos os Estados, do nosso imenso Brasil –– do Amapá, do Acre, de Rondônia, de Roraima, da Amazônia, da minha tão amada Bahia e dos demais Estados do Nordeste, até do Rio Grande do Sul, passando pelo Centro-Oeste, pelo Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo. Como isso é reconfortante! Prova maior de que dirigimos a nossa Associação –– a Ajufe –– de acordo com as idéias da maioria.
Abril de 1974. Eis-me juiz de Direito, depois de quase cinco anos como promotor público. Comecei pelas pequenas cidades, cidades humildes, tranqüilas. Na primeira comarca em que trabalhei, o juiz quase não aparecia.  Basta dizer-lhes que, em dois anos, ele só fez cinco audiências. Dediquei-me, então, de corpo e alma, ao ensino. Cheguei a ser diretor do ginásio e da escola normal. Lembro-me de que, nas férias da escola, viajei para Esplanada, cidade onde meu pai era promotor. Dois dias depois, ele perguntou-me se eu estava de férias. Respondi-lhe que não, mas como o juiz não aparecia, resolvi viajar. Ele disse: “Gosto de você aqui ao meu lado, mas seu lugar, meu filho, é na sua comarca, pouco importa que o juiz não trabalhe”.
Voltei. E encontrei uma cidade triste, sem a algazarra dos estudantes, sem a beleza das normalistas.
Ainda outras doze comarcas percorri. A maioria pobre. Basta dizer-lhes ainda que, em algumas delas, a pensão era tão simples que o banheiro ficava fora do corpo da casa; banho era de cuia; o quarto, de “parde meia”. A comida era carne de bode, arroz, feijão e salada de tomate quase todos os dias. Povo pobre e sofrido, porem bom, atencioso. Eu atendia a todos, ouvia seus lamentos, seus sofrimentos. Aqui, nesta Casa, um de seus juízes, Aloísio Pimenta, advogou quando eu era juiz em Saúde, minha primeira comarca. Saúde que, nove anos após ter saído de lá, adotou-me como filho, outorgando-me o título de Cidadão.
Hoje, aqui, também está presente a promotora com quem trabalhei em Itagibá, a Subprocuradora-Geral da República, Zélia Gomes. Deve ela lembrar-se dos meninos que eu colocava sentados de castigo no corredor do fórum, estudando, por terem cometido alguma travessura.
Senhores, neste mês, há 500 anos, aportava nesta terra, da qual já tinha certeza existir, com 13 navios e 1.500 homens, Pedro Álvares Cabral, assegurando a posse do Brasil para a Coroa Portuguesa. Um povo bom nos colonizou. Dele não nos podemos queixar. Encontrou aqui uma população inocente, de cultura simples. Maltrataram os índios? Se maltrataram, nós, agora, estamos fazendo a mesma coisa. Vejam o que diz Darcy Ribeiro: "Os Yanomami estão sofrendo agora o que sofreram outros índios há quinhentos anos". Cinco séculos são passados. Precisamos cuidar do nosso índio, demarcar suas terras, preservar sua cultura. E não querer civilizá-lo. Da miscigenação do branco, índio e negro, uma gente neobrasileira surgiu, composta, como retrata Darcy, “da massa de mestiços em busca de sua própria identidade, construindo na inocência o seu destino”. Este é o nosso Brasil, um Brasil de gente forte, mas sofrida.
Praticamente no mês de abril de 1989, aqui cheguei para compor o Tribunal Regional Federal da Primeira Região, criado pela Constituição de 1988. Deixava a Bahia, Bahia de “todas as doçuras”. Bahia “de todos os santos”. Bahia, cidade-feitiço, cidade-morena. Bahia “de todos os pecados”. Bahia encantadora, minha querida e amada Bahia. Disse um poeta, com precisão invejável:
"Quem nunca foi à Bahia não viu o que a vida tem: passado, glória, poesia…amar… beijar… querer bem! Não conhece o mar que nos caracteriza. Tanto mar, tanto mar, céu azul, um sol brilhante e quente, coqueiros buliçosos a nos saudarem alegremente."
Senhores, sou o oitavo juiz a assumir a presidência deste Tribunal. Antes de mim, dirigiram esta Casa, com acerto e dedicação, Alberto José Tavares Vieira da Silva, Anselmo de Figueiredo Santiago, Hermenito Dourado, José Alves de Lima, Mauro Leite Soares, Nelson Gomes da Silva e Plauto Afonso da Silva Ribeiro. Tenho a esperança de não decepcioná-los, tampouco de decepcionar os juízes que me elegeram, os funcionários desta Casa e das quatorze seções judiciárias, que muito de mim esperam. Desejo, também, não decepcionar os jurisdicionados desta vasta Região.
Vi este Tribunal nascer, firmar-se e tornar-se admirado e respeitado. É com entusiasmo que o vejo, com amor que a ele me refiro e que, com justo orgulho, o reverencio.
Dos dezoito juízes que fizeram parte da primeira composição, permanecem apenas três: Plauto, eu e Catão. Anselmo Santiago, Adhemar Maciel, Vicente Leal, Fernando Gonçalves, Aldir Passarinho Junior e Eliana Calmon foram para o egrégio Superior Tribunal de Justiça. Alberto Vieira da Silva voltou a pontificar nas salas de aula, sem olvidar dos búfalos da sua querida fazenda. Euclydes Aguiar foi para o campo, dedicando-se ao plantio de café e à criação de gado de raça. O amor ao campo fê-lo deixar cedo esta Casa. Hermenito Dourado retornou às atividades de advogado. Nelson Gomes da Silva optou, também, pela advocacia. Mauro Leite preferiu ser assessor de ministro do STJ. José Alves, Murat Valadares e Hércules Quasímodo da Mota Dias não titubearam, preferiram realmente descansar. Orlanda é assessora de Desembargador.
Com referência aos funcionários, muitas mudanças houve. Muitos saíram daqui para assumir a carreira de juiz federal, juiz de Direito, procurador, a fim de servir a outros órgãos.
Partimos do nada. Não havia ao menos cadeira e mesa para acomodar os funcionários e juízes. Um só telefone servia a todo o tribunal. Computador, nem imaginar… No máximo, uma máquina de escrever “edite”. Foi Alberto José Tavares Vieira da Silva, nosso primeiro presidente, que, com uma energia fora do comum, com raça e dinamismo, auxiliado por nós, juízes e funcionários, montou este Tribunal. Fê-lo nascer do nada. Foi o seu criador.
Nesta oportunidade, prometo dirigir o Tribunal com os olhos voltados para o bem-estar de todos, principalmente os jurisdicionados. Estarei voltado sempre para a “Justiça Justa”.
A ordem jurídica
E o que é a Justiça?. Comparou-a Roberto Aguiar, prestem atenção, em sua obra O que é Justiça, a uma "bailarina inconstante e volúvel" que "troca de par no decorrer do jogo das contradições da História. Ora", diz ele, "a vemos bailar com os poderosos, ora com os fracos, ora com os grandes senhores, ora com os pequenos e humildes. Nesse jogo dinâmico, todos querem ser seu par e, quando ela passa para outras mãos, logo será chamada de prostituta pelos relegados ao segundo plano.".
A Justiça, diz ele:
"Julgando-se eterna e equilibrada, não sabe, mas envelhece, esvazia-se, torna-se objeto de chacotas, e aqueles que foram por tanto tempo preteridos e nunca tiveram em suas mãos essa mulher, começam a pensar que não é uma fêmea distante e equilibrada que desejam, mas uma mulher apaixonada e comprometida, que dance no baile social os novos ritmos da esperança e do comprometimento. Não querem mais um ser acima de todos, mas o que está inserido na luta daqueles que se empurram e gritam para que seus ritmos e músicas sejam ouvidos: os ritmos e músicas da vida, da alegria, do pão e da dignidade. Essa bailarina que emerge não será diáfana e distante, não será de todos e de ninguém, não se porá acima dos circunstantes, mas entrará na dança de mãos dadas com os que não podem dançar e, amante da maioria, tomará o baile na luta e na invasão, pois essa justiça é irmã da esperança e filha da contestação. (…) essa nova justiça emergente do desequilíbrio assumido, do compromisso e do conflito destruirá aquela encastelada nas alturas da neutralidade e imergirá na seiva da terra, nas veias dos oprimidos, no filão por onde a História caminha."
E continua Roberto Aguiar:
A Justiça não é neutra, mas sim comprometida, não é mediana, mas de extremos. Não há justiça que paire acima dos conflitos, só há justiça comprometida com os conflitos, ou no sentido de manutenção ou no sentido de transformação.
Lutemos por
mais um instrumento para aqueles que estão imersos na luta pela transformação social; em suma, uma concepção de justiça combatente que emerge das práticas sociais dos oprimidos.
Lutemos, pois, por uma Justiça que tenha como projeto um mundo melhor, mais humano, mais feliz.
Não existe justiça neutra. Ou ela está comprometida com o grupo dominante, grupo social minoritário, ou com os dominados, os oprimidos, a imensa maioria. Nós, juízes, teremos de fazer a opção. Ou justiça da minoria, dos dominadores, ou da maioria, dos desvalidos. Afinal, questiono, de que lado nós, juízes, devemos ficar? Sem dúvida, a meu sentir, necessitamos buscar o melhor para o povo, tomar partido, portanto, dos desvalidos.
"Nos tempos de hoje", "os oprimidos desconfiam da Justiça, sofrem o peso das leis, observam as decisões judiciais, padecem nas mãos da polícia, são expulsos das terras que possuem, recebem salários insuficientes". Atualmente, a posse deve ter mais valor do que a propriedade.
Não se deseja mais uma Justiça cega, que não vê quem está sendo julgado, uma Justiça abstrata, amorfa. Não se deseja mais uma Justiça distante. Não se almeja uma Justiça não comprometida. A Justiça não pode "traduzir" os interesses dos grupos detentores do poder e ser utilizada para a manutenção desse poder. A Justiça não pode ser o respaldo das ações arbitrárias para a manutenção de uma ordem "supostamente" justa. O certo é que quem está no poder tem de apresentar uma justa causa que legitime sua atuação, que explique sua ação de tomada de poder. Não se pode conceber uma Justiça fora da sociedade para julgar os cidadãos, mas uma Justiça (justo que emerge) saída dos conflitos e contradições reais.
O grande Ruy Barbosa dizia: "... a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam".
Tal afirmação era um grande avanço no início deste século [1]. A princípio, parece que o conceito está perfeito. A igualdade estaria realizada. Como as idéias não podem petrificar-se, hoje já podemos pensar como Roberto Aguiar: se tratamos desigualmente os desiguais, "as desigualdades continuarão a existir, as diferenças sociais agudizarão, e a Justiça tentará harmonizar o não-harmonizável, assim nada mudaremos. Tudo continuará como está".
Porém, desejamos uma Justiça de mudança, de transformação. A Justiça dos oprimidos porque é a Justiça da maioria. A Justiça é sempre valorativa –– ou dos opressores, ou dos oprimidos. Como já disse, temos de optar por uma ou por outra. Se dos opressores, nada mudará, nada se transformará. Para a manutenção do que aí está, a Justiça deve ser neutra, eqüidistante. Tenham sempre que a idéia de Justiça nunca será igual para todos. O justo para os dominadores não é o mesmo para os dominados; o que é ordem para uns é dominação para outros. Tudo o que possa afetar a segurança dos dominadores, a estabilidade das instituições econômicas, significa desordem, injustiça, subversão. Não podemos esquecer que o poder existe para servir os interesses daqueles que o detêm. Se os que o detêm são uma minoria, sofre então o povo. Se são a maioria, teremos um governo voltado para o bem-estar da maioria, isto é, para o bem comum.
As leis não são feitas pelo povo. Os parlamentares, em sua grande parte, são eleitos por força dos grandes grupos econômicos, pela classe dominante. Logo, não representam o povo e sim esses grupos. É um Congresso constituído pelas minorias. Daí as leis injustas e iníquas para a imensa maioria da população, e justas, sem dúvida, para o grupo dominante. Ninguém legisla contra si mesmo.
Disse com acerto Roberto Lyra Filho em O que é Direito:
"A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção."
Mas, mesmo assim, podemos fazer uso do direito alternativo, ou seja, no ensinamento de Lyra Filho, "explorar as contradições do direito positivo e estatal em proveito não da classe e dos grupos dominantes mas dos espoliados e oprimidos".
O juiz é responsável por uma sociedade justa, igualitária, fraterna e solidária. O juiz não pode ficar longe do povo. Lembremo-nos da Lição de Antonio Gramsci: "O elemento popular sente, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual sabe, mas nem sempre compreende e, muito menos, sente". Por conseguinte, temos de aproximar-nos do povo para sentir o que ele sente e, com o nosso saber jurídico, decidirmos com justiça.
Em sua obra Estado, Governo, Sociedade, Bobbio transcreveu pensamento de Platão, em que observa:
Onde a lei é súdita dos governantes e privada da autoridade, vejo pronta a ruína da cidade (do Estado), e onde, ao contrário, a lei é senhora dos governantes e os governantes seus escravos, vejo a salvação da cidade (do Estado) e a acumulação nela de todos os bens que os deuses costumam dar às cidades.
O Estado não pode ser identificado com a ordem jurídica; o Estado não "encarna" o direito. O poder do Estado está legitimado pela segurança que proporciona a todos, e quem lhe dá validade é o direito, cuja força vem do Estado. A legitimidade do Estado deflui da vontade do povo. O poder do Estado está regulado e limitado pelo direito. Quem estabelece os limites do exercício do poder do Estado é o Direito. Motivo por que se diz Estado de Direito.
Observamos que a coisa julgada e mesmo decisões judiciais tecnicamente executáveis, de caráter antecipatório, somente são, sem delongas, obedecidas quando o Governo quer. Os órgãos administrativos do Executivo resistem a cumprir as decisões judiciais. E até mesmo, pasmem, a maior autoridade do Congresso Nacional prega o não-cumprimento de decisão judicial transitada em julgado. A essa ignomínia é preciso dar um basta, antes que o mal se propague em proporções alarmantes.
Atentem em que já se vê no próprio Poder Judiciário alguns juízes quererem sobrepor-se a decisão judicial, pretendendo analisar seu mérito para decidir se a cumprem ou não. Isso põe por terra a ordem jurídica do País. Qual a segurança que terá o jurisdicionado? É fatalmente a derrocada do Poder Judiciário.
Examinamos também que parece que a loucura verdadeira ou mascarada, ou uma ignorância absurda tomou conta do nosso País.
A Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o narcotráfico teve a audácia de convocar uma juíza federal para explicar a razão de ter relaxado a prisão de dois acusados. Tamanha "petulância" teve de pronto resposta precisa, firme, do Supremo Tribunal Federal, pelo seu Ministro Nelson Jobim. E, a meu sentir, pior do que a atitude do presidente da CPI foi a da imprensa, que não se estarreceu com o fato: antes, ao que tudo indica, achou natural.
Somos contra o foro privilegiado. Líderes governistas apresentaram, há poucos dias, uma proposta à reforma do Judiciário para manter, em foro privilegiado, o julgamento de presidentes da República, ministros de Estado, senadores, deputados e juízes, quando não mais exercem o cargo. O foro privilegiado não é uma garantia da pessoa, e sim da função, para evitar a subversão da hierarquia, cercando, assim, o processo de garantia especial. Portanto, se não mais exerce a função, direito não pode ter o indivíduo a foro privilegiado, ainda que tenha cometido a infração durante o exercício da função.
Também somos contra o nepotismo, ou seja, a prática de a autoridade nomear parentes próximos para o serviço público com a finalidade de aumentar a renda familiar ou ajudar a montar uma máquina política, em detrimento do bem-estar público.
O nepotismo e o foro privilegiado após o acusado deixar o exercício do cargo atentam contra a ordem jurídica do País.
Não podemos, ainda, deixar de lembrar que, até a presente data não foi criada a Defensoria Pública da União [2], prevista na Constituição. Onze anos são passados, e nada. O Executivo e o Legislativo ainda não se dignaram a criá-la. E a Defensoria Pública é um instrumento básico do Estado Democrático de Direito, pois, sem ela, o exercício pleno da cidadania não existe. Dela ficam de fora os menos favorecidos, os hipossuficientes, os necessitados e os marginalizados.
A realidade brasileira. A economia. A pobreza
O ”espectro da miséria e do desespero tem-se tornado cada vez mais evidente”. O Brasil é o terceiro país exportador de alimentos do mundo e possui, no entanto, milhares de famintos. Quarenta milhões de brasileiros são pobres, sendo que, destes, dezesseis milhões estão abaixo da linha da pobreza. São, senhoras e senhores, indigentes.
Com o amor à globalização por parte do Executivo, o que vemos é a nossa sociedade dividida "em dois segmentos –– um, de extrema riqueza e privilégio; outro, de imensa miséria e desespero, formado por pessoas inúteis, dispensáveis". Vivemos numa sociedade em que muitos trabalham para poucos, em que uma minoria domina o poder econômico, oprimindo a maioria que trabalha ou é desempregada.
Num sistema neoliberal de livre mercado, imposto pela globalização, os recursos são canalizados para os ricos e para os investidores estrangeiros.
Miséria por todos os lados. Para o trabalhador, como diz Millôr Fernandes, "cada vez mais sobra mês no fim do salário".
O espetáculo a que estamos assistindo com freqüência é o Governo servir a determinados interesses particulares. Vejam as desapropriações de terras imprestáveis para a agricultura, de terras de difícil exploração. Desapropriações para beneficiar determinadas pessoas ou grupos econômicos. Uma ação entre amigos. Dos amigos que estão no poder. Cresce, assim, o movimento dos sem-terra, com uma organização invejável, ocupando, não invadindo, as terras abandonadas por seus proprietários. Se o Governo não age, agem os sem-terra. Atentem, como salientou Francisco Urbano, da Contag, que não é o direito de propriedade que está sendo agredido, mas, sim, o direito de propriedade que está agredindo o direito à vida.
A todo instante, vemos o saneamento d estabelecimentos de crédito, em que seus proprietários saem mais ricos, em detrimento de todo um povo. Tudo isso pode ser "legal", mas é profundamente injusto com a maioria.
O Governo, como lembra Luís Fernando Veríssimo, "quer a compreensão dos trabalhadores para o sacrifício de mais alguns de seus direitos no combate ao mal que ele mesmo criou com seu modelo empregocida".
O Executivo dobra-se ao poder econômico. Este, na verdade, o quarto poder, e, sem dúvida, o mais forte. Assim, temos as corporações transacionais, os bancos internacionais, o Fundo Monetário Internacional –– que dita uma política econômica determinada, limitando a soberania do País –– e o Banco Mundial. As multinacionais determinam as regras do jogo da economia nacional. As grandes decisões não são tomadas no Planalto. Os parlamentos menos força passam a ter. e tudo é simplificado com a seguinte fórmula: deixar que o mercado resolva. É a derrocada da democracia. Enfim, o que temos é a imposição de uma estrutura econômica sobre a sociedade.
O Estado não é um fim em si mesmo, mas é, sim, um instrumento para a realização dos fins do grupo social.
A corrupção
E devido à má organização do Estado, a corrupção aumenta. O aumento da corrupção –– definida no Dicionário de Ciências Sociais como o "uso do poder público para o proveito, promoção ou prestígio particular, ou em benefício de um grupo ou classe, de forma que constitua violação da lei, ou dos padrões de elevada conduta moral", geralmente está associado às transformações da estrutura do poder político e social.
A expansão dos negócios, o acúmulo de riquezas, o consumismo desenfreado, a educação equivocada, incorporando padrões deturpados de costumes, e o mau exemplo dos governantes levam a uma disseminação da corrupção, tanto no âmbito público como no privado. A corrupção campeia em todos os setores. Em uns mais que em outros, mas ela sempre está presente. Desfalques, rombos financeiros, desvios de dinheiro, subornos, espionagem industrial. É um descalabro!
Uma sociedade em que campeia o nepotismo, o famoso "jeitinho brasileiro", o consumismo exagerado, a falta de moralidade, em que a sociedade perde a consciência dos valores éticos, em que se admite a gorjeta no serviço, ou que o parlamentar receba jetom por sessão do Congresso a que não comparece, em que existe o parlamentar "pianista", as sinecuras dadas a parentes e a afilhados políticos, em que o funcionário não é valorizado, em que o serviço público não é fortalecido e dinamizado, em que vigora um capitalismo selvagem, em que os incentivos fiscais se prestam à fraude, em que existe uma burocracia enervante,  em que os meios de comunicação moldam um tipo de comportamento não ético, só pode descambar para a corrupção.
Com acuidade disse Edmundo Oliveira em Crimes de Corrupção: "Não a extinguem os indumentos, os trajes, os vestuários; debaixo da toga, da farda ou do farrapo é o mesmo barro, pulsa o mesmo coração".
Por toda parte vê-se corrupção. Ela solapa o Estado de Direito! É necessário que se apurem os fatos firmemente, sem estardalhaço, e que sejam punidos tanto o corrupto como o corruptor.
A imprensa
Estou convicto de que a imprensa deve ter o papel de criticar os Poderes da República, informar e criar opiniões, conscientizar a população. Isso é próprio de um país livre. O jornalismo investigativo é grande auxiliar da democracia. Mas o que não posso tolerar é uma imprensa controlada pelo Poder Econômico, que permite que os Poderes, por intermédio da própria mídia, a comande. Não pode, por outro lado, a imprensa arrogar-se o papel de única moralizadora do País, achincalhando a todos, deturpando os fatos, apenas e tão-somente para servir a algum senhor ou criar escândalos. Os abusos da imprensa –– e não são poucos –– devem ser punidos. Um de seus erros é a pressa em noticiar sem, antes, bem se informar. É a busca do famoso "furo de reportagem". O pior, no entanto, é quando ela tem conhecimento perfeito do fato, mas informa erroneamente. Ou quando inventa notícia, ou transforma em notícia o que, na verdade, não é notícia, Ou, ainda, quando vai alem da notícia, que deve ser seca, para adjetivar. São os suspeitos transformados em culpados. O direito de informar não pode ser absoluto a ponto de violar os direitos do cidadão ou conspurcar as instituições.
Disse com acerto Raduan Nassar, em sua obra Cidadania e Justiça:
"No abuso do poder não vejo diferença entre um redator-chefe e um chefe de polícia, como de resto não há diferença entre dono de jornal e dono de governo em conluio um e outro com donos de outros gêneros."
O Poder Judiciário padece nas mãos da imprensa. É certo que a Justiça é morosa, excessivamente morosa, mas a imprensa não informa as razões dessa morosidade e crucificam o juiz. Sabe a imprensa que os juízes não são bem remunerados, mas qualquer perspectiva de aumento salarial, ainda que ridícula, é criticada, e, então, ela se aproveita do fato para fazer uma comparação maldosa, perversa, com os que ganham mal, esquecendo quantos jornalistas ganham bem, excessivamente bem, enquanto muitos empregados das empresas jornalísticas percebem o salário mínimo ou, talvez, um pouco acima. Sabe, também, a imprensa que o trabalho do juiz, a enormidade de processos que tem sob sua responsabilidade, sabe que a grande maioria trabalha até altas horas da noite e, assim, furta-se ao prazer de desfrutar com a família aos sábados, domingos e feriados. E tudo pelo trabalho. No entanto, é tachado de preguiçoso, que quer, acreditem, privilégios e vida mansa.
Temos nossos erros. Ficamos estagnados, em posição de mero espectador, tínhamos aversão ao progresso, a uma linguagem simples, à informática. Não recebíamos a imprensa, não dialogávamos com os jornalistas, fiéis a um princípio errôneo de que o juiz só fala nos autos, fato que nos levou a ficar distanciados do povo.
A sociedade merece ser informada de nossos atos para bem compreendê-los. Tem o povo o direito de entender nossas decisões. E o canal para que isso ocorra é a imprensa. Fazemos parte de um Poder que é desconhecido pelo povo, que não conhece, sequer, sua estrutura. Não sabe a sociedade quanto trabalhamos e imagina, erradamente, que temos um salário alto. Não acredita sequer nos nossos contracheques, imagina que deve haver um oculto. Construímos, no entanto, uma redoma. E nela entramos. Talvez esse tenha sido nosso maior erro.
Porém, apesar desses erros, o que não se pode admitir é que se ridicularize a Justiça, a instituição, amesquinhando-a, detratando-a, desmoralizando-a. Critique-se o mau juiz, o juiz venal, corrupto, mas, jamais, a instituição. Critique-se a decisão de forma objetiva, mas não de molde a levar a Justiça ao desprezo por parte da sociedade.
Tivesse o Poder Judiciário verba de publicidade, com uma forte assessoria de imprensa, e então a realidade seria bem diferente.
Pessoalmente, possuo um bom relacionamento com a imprensa. Recebo os jornalistas a qualquer hora, pois bem sei que o tempo está contra eles, que têm uma atividade que deve ser ágil, rápida. Presto-lhes informações para que possam bem noticiar. E, salvo um ou outro caso, nunca deturparam o que declarei. Na presidência desta Casa, não mudarei meu comportamento.
Assim manifestando-me, estou, obviamente, declarando que sou contra a chamada "lei da mordaça". O juiz não pode dar opinião sobre o processo, mas deve prestar informações acerca do processo, ainda que in off, como dito em linguagem jornalística. É dever do juiz dar informações sobre o processo. É necessário que o juiz se comunique com a sociedade. O jornalista trabalha com a fonte, e a melhor fonte, no Judiciário, é o juiz, pois é quem tem a notícia e pode bem esclarecer-lhe. E como? Dando a notícia de forma objetiva, simples, transparente. Se o jornalista não encontra essa fonte, autêntica, atual e veraz, outra fonte irá procurar, que poderá não ser fidedigna.
O teto
O juiz não pode pretender ficar rico na sua profissão, mas deve estar livre de preocupações de caráter econômico, de dívidas bancárias, para decidir com serenidade, calma, tranqüilidade, Não pode ele preocupar-se com uma outra atividade, lecionar, dar cursos, palestras etc., para completar seu salário. Um salário condigno de suas enormes responsabilidades é, sem dúvida, garantia de independência.
Lutamos por uma melhoria salarial. O homem não vive somente de pão, mas dele sobretudo vive, como lembra João Mangabeira. Um juiz substituto percebe, hoje [3], um salário mensal líquido de R$ 3.600,00 –– inferior a salários de funcionários de nível médio no Legislativo e no próprio Poder Judiciário. Isso é inconcebível!
Há dois anos lutamos pela aprovação de um teto salarial para os três Poderes, mas interesses dos que têm altos salários e a demagogia de certos parlamentares, com o propósito tão-só de adular o povo. Impedem que esse teto seja aprovado. Só depois que a Associação dos Juízes Federais do Brasil congregou os juízes para uma greve nacional –– exercitando um direito constitucional ––, aceita por mais de 80% dos juízes e apoiada por grandes jornalistas, é que se dispuseram a enviar um projeto de lei para que, provisoriamente, fosse estabelecido um teto. E discutiram migalhas, quinquilharias. R$ 12.720,00? É muito! R$ 11.500,00? Sim! Uma diferença de R$ 1.220,00. Tudo isso é ridículo!
Alem do mais, resiste o governo à aprovação dos adicionais por tempo de serviço. Como se isso fosse onerar grandemente o Tesouro Nacional. Recusando-se ele a dar esse adicional, teremos um juiz ingressando na Justiça ganhando o mesmo que já conta, por exemplo, com 35 anos de serviço. Não está certo. É acabar com a carreira.

CONCLUSÃO
Precisamos de reformas que fortaleçam a sociedade e não o Estado. A reforma do Judiciário tem por objetivo principal aumentar a força do Governo. A da Previdência, tirar direito dos cidadãos. A tributária, elevar a carga impositiva. A administrativa, aumentar a burocracia, propiciando maior corrupção. Precisamos de reformas de base, que façam com que o País cresça, prospere e que façam seu povo feliz.
Precisamos de uma revolução cultural que liberte totalmente o homem e que tenha caráter humanístico, democrático, pluralista.
Despretensiosamente, almejo tão-somente, nesta presidência, contribuir, vencendo as minhas deficiências naturais, e, na medida das minhas exíguas forças, para a renovação do Poder Judiciário em benefício do nosso povo; crendo que a independência dos juízes é a única e verdadeira salvaguarda da liberdade do povo. Amo a justiça e "quem sabe amar, mil vezes diz seu amor, e nunca bastantemente o terá dito".
A força é a alavanca do mundo, garantia da Justiça, como dizia Pascal. "Venham, pois, juntas a justiça e a força, de tal modo que o que é justo seja forte e o que é forte seja justo".
[1] O autor fala em 17 de abril de 2000, portanto, no século XX.
[2] O autor fala em 17 de abril de 2000.
[3] 17 de abril de 2000.







quarta-feira, 4 de maio de 2011

Este mundo da injustiça globalizada


José Saramago
José de Sousa Saramago (Azinhaga, Golegã, 16 de Novembro de 1922 — Tías, Lanzarote, 18 de Junho de 2010) foi um conceituado escritor, argumentista, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português.
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Ciberfil Literatura Digital. Versão PDF: Marcelo C. Barbão. Março/2002. Distribuição permitida.
Veja nosso site: www.ciberfil.hpg.ig.com.br ou envie-nos e-mail: ciberfil@yahoo.com
Texto lido na cerimônia de encerramento do Fórum Social Mundial 2002

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Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.
Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento.
Saíram, portanto, as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e, em pouco tempo, estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês.
"Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."
Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.
Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos.
Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.
E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que fomos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes...
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.
Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.

domingo, 17 de abril de 2011

Advocante é...


... precisamente quem advoga, considerado, porém, sujeito ativo da atividade.
[...]
Em contraste nítido com advogado — que vem a ser aquele que é chamado a advogar — entetanto, em estreita conexão com este, advocante carrega em si um papel proativo. Implica, já no título, a iniciativa que o caracteriza. Conquanto ele possa ser chamado a advogar — e certamente o fará, se o contrato devido estabelecer-se — ele é, desde já e por natureza, um iniciador de providências.
Hmmm! Você pode estar-se indagando sobre a legitimidade do termo. Assim, em sua atenção, seja desde logo esclarecido que "advocante" é um neologismo. Não vou aqui reclamar a paternidade da criança, pela razão simples seguinte: vai que algum outro lusófono já a tenha concebido e me verei em maus lençóis... No entanto, seja também digno de nota que esse termo — advocante —  bem como seu colateral, advogante, com a mesma neológica significação, eu já os tinha proposto em universidade lá pelos ídos de 1999. Bem se vê: trata-se de remissão respeitosa ao... milênio passado. Coisas de transição.
Como se deu a minha gênese para advocante? Assim. Era o ano de 1999, já o disse, e eu quis saber da etimologia de advogado. Queria mais que a mera retrospectiva etimológica, curiava também por nuances semiológicas mais amplas. Por que advogado — indagava-me intimamente — já que a origem latina do étimo elucidava muito da questão? Com efeito, "advogado" vem-nos do latim advocare (ad + vocare = falar junto [ou em favor] de alguém, esse alguém, por suposto, o cliente do advogado). É forma participial passada.
Advogado é, assim, aquele que é chamado (por alguém, naturalmente) a prestar assistência ou ao seu invocante ou a outrem, em questões da lei.
E, assim, tudo retoma o sentido original da pergunta. Por que advogado?
Invoco — auxílio no mister — atacante versus atacado, comunicante versus comunicado e predicante versus predicado. Que têm eles a ver com isso?
Ora, advocante está para atacante (comunicante, predicante etc.) assim como advogado está para atacado (comunicado, predicado etc.). Todos os primeiros carregam a primazia da atividade, os segundos, o cerne da passividade. É certo que, dada a complexidade do fenômeno linguístico, passe a haver um como que açambarcamento, um assenhoreamento de significações, de modo que certo termo, cujo significado seja um originariamente, passe a ser (ou ter) também outros consequentemente. Isso se deu com advogado.
Assim, ao postular advocante (também advogante, advogador etc.), não estou apenas exercitando vernáculo. Passeio pelas ricas searas da semiologia, do ousar humano, proponho cultura, provoco cultura, crio cultura...
Coisas de advogado. Melhor — e em tempo — coisas de advocante...